A LOUCA
Ao descer do ônibus já deveriam ser
quase oito horas da noite. Estava escuro. O coletivo seguiu para o seu destino
pelo asfalto e eu ainda tinha que caminhar cerca de 2 km na estrada de chão até
chegar à chácara de meu irmão Gabriel, sua esposa e filhos. Ainda bem que havia
uma pequena lua para me ajudar a seguir pela estrada sinuosa.
Já conhecia bem o caminho. Antes do
meu irmão e sua família morarem nessa casa, meus pais já haviam morado com meus
dois irmãos menores e solteiros: Tadeu e Tiago. Quando Tadeu e Tiago foram
estudar na cidade, meus pais resolveram mudar-se também e ofereceram a chácara
para o Gabriel. Gostou da ideia e mudou-se com a família, pois adorava cuidar
das galinhas, patos, horta... Enfim, da vida no campo.
Encaixei bem a alça da mochila no
ombro, ergui a gola da jaqueta jeans
por causa do ar frio, meti as mãos nos bolsos e comecei a andar. De repente vi
um vulto bem do meu lado. Como não havia visto aquele rapaz? Ao perceber, ele
já estava ao meu lado ameaçando-me com uma faca.
- Aí dona! Passa a carteira! –
disse-me ele.
Virei meu rosto rapidamente para
ele, escancarei minha boca mostrando bem todos os dentes, soltando uma sonora e
estridente gargalhada, enquanto apontava o dedo indicador para sua cara.
O rapaz ficou me olhando meio
desconfiado.
Esbugalhei mais os olhos, mostrei
mais meus dentes, aumentei a gargalhada e me babei de tanto rir.
Junto a essa performance, eu falava ao rapaz, mas ele nada entendia porque eu
gargalhava junto com a fala: - Olha sua cara, moço! O que aconteceu? Credo!
Você não tem vergonha de sair para a rua com essa cara toda pintada? É branco?
Vermelho? Verde? Branco, vermelho e verde? Tudo misturado? Não estou
conseguindo entender! Pode me explicar?
Rapidamente emendei a fala com um
tom bem alto, não lhe dando chance de responder: - Não estou acreditando no que
estou vendo! E ainda tem a cara de pau de vir conversar comigo com essa cara
toda manchada ou pintada? Você não viu que estava assim? Ninguém avisou? Escuta
aqui, cara, você não tem amigos, não?
Nessa altura já não estava mais
gargalhando, mas meus olhos continuavam esbugalhados e com meus dentes à
mostra: - Infelizmente não tenho espelho aqui. Vem comigo! Segue-me! Vou
conseguir emprestado um espelho e você mesmo poderá ver que não estou
exagerando!
Fui caminhando e levando o rapaz
comigo, mas sempre sem parar de falar: - Ah, todos falam que sou louca, mas não
é loucura! Não estou inventando isso! Você mesmo verá com o espelho. Dizem que
não estou louca, que já estou curada, mas como posso estar curada, se nunca fui
louca? Curada do quê? Quando estou muito alterada como agora, eles vêm com aquelas
agulhas enormes e picam meus braços. Olha só meus braços como estão cheios de
picadas.
Nesse momento tentei puxar a manga
da jaqueta jeans para cima, mas não
consegui. A performance continuou e a caminhada pela estradinha de chão
também. Já havíamos percorrido quase a metade do caminho:
- Até que você não é de se jogar
fora. Está meio “passado”, desarrumado, desajeitado, mas acho que, para
começar, um banho resolve em parte. E esse cabelo? Quanto tempo faz que não
passa por um corte e uma lavada? Não! Não vem me dizer que não tem dinheiro!
Existem muitos salões de beleza que dão cursos e precisam de modelos para
ensinar aos alunos e nada cobram! E esses dentes? Deixa-me ver esses dentes!
Abre a boca! MAIS! ARREGANHA ESSA BOCA! NOSSA! CRUZES! Já passou da hora de
visitar um dentista, não acha? Não precisa responder. Já sei o que vai dizer:
“Não tenho dinheiro, dona”. Pois eu digo a você: vai a um posto de saúde. É
isso aí: banho, cabelo e dentes. Do contrário, você não arruma namorada! Quem
vai querer você assim? Por falar nisso, tem namorada? Claro que não! Quem vai
chegar perto de você? E não se esqueça de tirar essa tinta horrorosa de sua
cara!
Tudo isso falei numa velocidade
impressionante, num tom de voz bem alto e sempre com os olhos bem esbugalhados.
As ideias iam surgindo e eu ia esparramando palavras em cima do rapaz. Não dei
qualquer chance de diálogo ou de resposta. Foi tudo muito rápido!
Nesse ponto, já estávamos em frente
da porteira que dá entrada para a casa do sogro do meu irmão, que fica no lado
esquerdo da estradinha de chão. A casa do Gabriel fica cerca de 500 metros
dali, no lado direito da estradinha.
Paramos em frente, fui abrindo a
porteira e falando: - Espera aqui. Vou correndo lá na casa buscar o espelho
para você ver essa máscara horrível que você está! Cá, cá, cá, cá! Não sai daí!
Vou super-rápido! Apenas um minuto!
Entrei na chácara, fechei a porteira
e fui caminhando rapidamente em direção à casa dos sogros do meu irmão. Bati
palmas e Dona Beatriz apareceu à porta.
- Boa noite, Dona Beatriz! Tudo bem?
Desculpa chegar a essa hora na sua casa, mas estou indo à casa do Gabriel,
porém antes preciso de um espelho emprestado. A senhora pode me emprestar?
Olhando-me assustada, Dona Beatriz
achou meio estranho o fato de eu pedir um espelho àquela hora da noite, mas me
emprestou e eu fui em direção à porteira, no entanto o rapaz não estava mais
lá. Retornei então à casa da Dona Beatriz e contei o que havia ocorrido. Ela me
disse que eu deveria me acalmar, pois deveria ter sido minha imaginação ao
caminhar pela estradinha de chão, numa noite enluarada. Então telefonou para o
Gabriel para que ele viesse me buscar. Escutei quando ela informou ao meu irmão
que eu estava muito agitada.
Logo que o Gabriel chegou, contei
tudo a ele novamente, da mesma maneira como havia narrado para Dona Beatriz.
Percebi que trocaram um olhar. Ambos falaram que eu deveria me acalmar que eu
estava muito agitada, que deveria ser fruto da minha imaginação por causa da
noite enluarada, etc.
Seria imaginação? Estou louca? Já
fui louca? Tenho que tomar calmantes? Será que tomei meus remédios hoje? Será
que não havia ninguém me acompanhando na estrada? Não havia faca? Nem tentativa
de assalto?
Por via das dúvidas, na saída, ao
passarmos pela porteira da chácara da Dona Beatriz, sem que meu irmão
percebesse, larguei o espelho em cima do tronco de madeira. Quem sabe
apareceria alguém com a cara pintada precisando de um espelho?
Continuamos nossa caminhada pela
estrada de chão em direção à casa do Gabriel quando ele me olhou, olhei para
ele e sorrimos um para o outro em cumplicidade: - Puxa mana, você está se
tornando uma excelente atriz! Conseguiu enganar até minha sogra! – disse-me ele
dando risada.
Essa estória não é baseada em fatos
reais. Qualquer semelhança com a realidade trata-se de mera coincidência. Ela e
seus personagens foram por mim inventados; são frutos da minha imaginação (ou
será que não? Cá cá cá cá cá).
Simone
Possas
(escritora
gaúcha de Rio Grande-RS,
membro
da Academia de Letras do Brasil/MS, ocupando a cadeira 18,
membro
correspondente da Academia Riograndina de Letras,
membro
da UBE/MS – União Brasileira de Escritores,
autora
dos livros MOSAICO, A MULHER QUE RI, PCC
e O PROMOTOR
graduada
em Letras pela UCDB,
pós-graduada
em Literatura,
contista
da Revista Criticartes,
blog:
simonepossasfontana.wordpress.com)
Nota da Autora:
- Conto escrito
em agosto/2010
- Publicado no
blog: simonepossasfontana.wordpress.com.br
- Publicado no
livro Mosaico, Editora Gibim.
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