quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018


A LOUCA


            Ao descer do ônibus já deveriam ser quase oito horas da noite. Estava escuro. O coletivo seguiu para o seu destino pelo asfalto e eu ainda tinha que caminhar cerca de 2 km na estrada de chão até chegar à chácara de meu irmão Gabriel, sua esposa e filhos. Ainda bem que havia uma pequena lua para me ajudar a seguir pela estrada sinuosa.
            Já conhecia bem o caminho. Antes do meu irmão e sua família morarem nessa casa, meus pais já haviam morado com meus dois irmãos menores e solteiros: Tadeu e Tiago. Quando Tadeu e Tiago foram estudar na cidade, meus pais resolveram mudar-se também e ofereceram a chácara para o Gabriel. Gostou da ideia e mudou-se com a família, pois adorava cuidar das galinhas, patos, horta... Enfim, da vida no campo.
            Encaixei bem a alça da mochila no ombro, ergui a gola da jaqueta jeans por causa do ar frio, meti as mãos nos bolsos e comecei a andar. De repente vi um vulto bem do meu lado. Como não havia visto aquele rapaz? Ao perceber, ele já estava ao meu lado ameaçando-me com uma faca.
            - Aí dona! Passa a carteira! – disse-me ele.
            Virei meu rosto rapidamente para ele, escancarei minha boca mostrando bem todos os dentes, soltando uma sonora e estridente gargalhada, enquanto apontava o dedo indicador para sua cara.
            O rapaz ficou me olhando meio desconfiado.
            Esbugalhei mais os olhos, mostrei mais meus dentes, aumentei a gargalhada e me babei de tanto rir.
            Junto a essa performance, eu falava ao rapaz, mas ele nada entendia porque eu gargalhava junto com a fala: - Olha sua cara, moço! O que aconteceu? Credo! Você não tem vergonha de sair para a rua com essa cara toda pintada? É branco? Vermelho? Verde? Branco, vermelho e verde? Tudo misturado? Não estou conseguindo entender! Pode me explicar?
            Rapidamente emendei a fala com um tom bem alto, não lhe dando chance de responder: - Não estou acreditando no que estou vendo! E ainda tem a cara de pau de vir conversar comigo com essa cara toda manchada ou pintada? Você não viu que estava assim? Ninguém avisou? Escuta aqui, cara, você não tem amigos, não?
            Nessa altura já não estava mais gargalhando, mas meus olhos continuavam esbugalhados e com meus dentes à mostra: - Infelizmente não tenho espelho aqui. Vem comigo! Segue-me! Vou conseguir emprestado um espelho e você mesmo poderá ver que não estou exagerando!
            Fui caminhando e levando o rapaz comigo, mas sempre sem parar de falar: - Ah, todos falam que sou louca, mas não é loucura! Não estou inventando isso! Você mesmo verá com o espelho. Dizem que não estou louca, que já estou curada, mas como posso estar curada, se nunca fui louca? Curada do quê? Quando estou muito alterada como agora, eles vêm com aquelas agulhas enormes e picam meus braços. Olha só meus braços como estão cheios de picadas.
            Nesse momento tentei puxar a manga da jaqueta jeans para cima, mas não consegui. A performance continuou          e a caminhada pela estradinha de chão também. Já havíamos percorrido quase a metade do caminho:
            - Até que você não é de se jogar fora. Está meio “passado”, desarrumado, desajeitado, mas acho que, para começar, um banho resolve em parte. E esse cabelo? Quanto tempo faz que não passa por um corte e uma lavada? Não! Não vem me dizer que não tem dinheiro! Existem muitos salões de beleza que dão cursos e precisam de modelos para ensinar aos alunos e nada cobram! E esses dentes? Deixa-me ver esses dentes! Abre a boca! MAIS! ARREGANHA ESSA BOCA! NOSSA! CRUZES! Já passou da hora de visitar um dentista, não acha? Não precisa responder. Já sei o que vai dizer: “Não tenho dinheiro, dona”. Pois eu digo a você: vai a um posto de saúde. É isso aí: banho, cabelo e dentes. Do contrário, você não arruma namorada! Quem vai querer você assim? Por falar nisso, tem namorada? Claro que não! Quem vai chegar perto de você? E não se esqueça de tirar essa tinta horrorosa de sua cara!
            Tudo isso falei numa velocidade impressionante, num tom de voz bem alto e sempre com os olhos bem esbugalhados. As ideias iam surgindo e eu ia esparramando palavras em cima do rapaz. Não dei qualquer chance de diálogo ou de resposta. Foi tudo muito rápido!
            Nesse ponto, já estávamos em frente da porteira que dá entrada para a casa do sogro do meu irmão, que fica no lado esquerdo da estradinha de chão. A casa do Gabriel fica cerca de 500 metros dali, no lado direito da estradinha.
            Paramos em frente, fui abrindo a porteira e falando: - Espera aqui. Vou correndo lá na casa buscar o espelho para você ver essa máscara horrível que você está! Cá, cá, cá, cá! Não sai daí! Vou super-rápido! Apenas um minuto!
            Entrei na chácara, fechei a porteira e fui caminhando rapidamente em direção à casa dos sogros do meu irmão. Bati palmas e Dona Beatriz apareceu à porta.
            - Boa noite, Dona Beatriz! Tudo bem? Desculpa chegar a essa hora na sua casa, mas estou indo à casa do Gabriel, porém antes preciso de um espelho emprestado. A senhora pode me emprestar?
            Olhando-me assustada, Dona Beatriz achou meio estranho o fato de eu pedir um espelho àquela hora da noite, mas me emprestou e eu fui em direção à porteira, no entanto o rapaz não estava mais lá. Retornei então à casa da Dona Beatriz e contei o que havia ocorrido. Ela me disse que eu deveria me acalmar, pois deveria ter sido minha imaginação ao caminhar pela estradinha de chão, numa noite enluarada. Então telefonou para o Gabriel para que ele viesse me buscar. Escutei quando ela informou ao meu irmão que eu estava muito agitada.
            Logo que o Gabriel chegou, contei tudo a ele novamente, da mesma maneira como havia narrado para Dona Beatriz. Percebi que trocaram um olhar. Ambos falaram que eu deveria me acalmar que eu estava muito agitada, que deveria ser fruto da minha imaginação por causa da noite enluarada, etc.
            Seria imaginação? Estou louca? Já fui louca? Tenho que tomar calmantes? Será que tomei meus remédios hoje? Será que não havia ninguém me acompanhando na estrada? Não havia faca? Nem tentativa de assalto?
            Por via das dúvidas, na saída, ao passarmos pela porteira da chácara da Dona Beatriz, sem que meu irmão percebesse, larguei o espelho em cima do tronco de madeira. Quem sabe apareceria alguém com a cara pintada precisando de um espelho?
            Continuamos nossa caminhada pela estrada de chão em direção à casa do Gabriel quando ele me olhou, olhei para ele e sorrimos um para o outro em cumplicidade: - Puxa mana, você está se tornando uma excelente atriz! Conseguiu enganar até minha sogra! – disse-me ele dando risada.
            Essa estória não é baseada em fatos reais. Qualquer semelhança com a realidade trata-se de mera coincidência. Ela e seus personagens foram por mim inventados; são frutos da minha imaginação (ou será que não? Cá cá cá cá cá).

Simone Possas
(escritora gaúcha de Rio Grande-RS,
membro da Academia de Letras do Brasil/MS, ocupando a cadeira 18,
membro correspondente da Academia Riograndina de Letras,
membro da UBE/MS – União Brasileira de Escritores,
autora dos livros MOSAICO,  A MULHER QUE RI, PCC e O PROMOTOR
graduada em Letras pela UCDB,
pós-graduada em Literatura,
contista da Revista Criticartes,
blog: simonepossasfontana.wordpress.com)


Nota da Autora:
- Conto escrito em agosto/2010
- Publicado no blog: simonepossasfontana.wordpress.com.br
- Publicado no livro Mosaico, Editora Gibim.
- Publicado no site: www.recantodasletras.com.br


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