Neste filme registramos os bastidores da campanha "Inclusão é Respeito!" 2025. Imagens simples, que sintetizam o esforço coletivo na promoção de uma sociedade mais justa, fraterna e com iguais oportunidades de realização, satisfação e crescimento a todos os viajantes de Pachamama, a nossa Nave Mãe. Agradecemos a Cláudia Ferrari, Ivanise Ferreira do Nascimento, Joelma Cristina Noli, Karla Celene, Margareth Ribeiro da Silva, Maria Julia Rangel de Bonis e Valéria Chiozzini que com suas vozes deram vida ao texto escrito.
“O pai do artista lendo jornal”, Paul Cézanne (1866)
Duzentas edições. Às vezes, quando escrevemos um número assim, grafado com efeito e por extenso, tentamos ampliar seu corpo para que acomode tudo o que não cabe nos contornos de um algarismo. Outras vezes, preferimos nem olhar tão de perto: duas centenas de meses em que um jornal literário independente, de papel, insistente, teimoso, ocupante de espaço no mundo real, conseguiu atravessar o tempo sem interrupções. Em um país com índices de leitura desestimulantes, que cria obstáculos silenciosos e permanentes à formação de leitores, esse feito diz menos sobre a sobrevivência de um impresso e mais sobre a permanência de uma comunidade que insiste em sustentá-lo. Em setembro, o RelevO completou 15 anos: “O caminho é sempre maior que o caminhão”, relembra o Barão de Itararé.
Há quem acredite que números traduzem um trabalho. Não traduzem, mas servem como referência. Eles não revelam as madrugadas de edição, as revisões que se multiplicam, as discussões editoriais, as caixas de arquivo abarrotadas, as dobras de jornal feitas à mão, os improvisos logísticos, o cuidado quase doméstico que um projeto cultural independente exige. Os números não registram o silêncio de quem escreve, o alívio de quem encontra publicação, o entusiasmo de quem abre o envelope. Ainda assim, eles nos ajudam a perceber que algo continua mesmo quando os passos são curtos e discretos.
Não é uma conversa sobre estatística, de fato. Nunca foi. Tratamos de continuidade, uma das formas mais exigentes de estar no mundo. A continuidade exige um tipo de atenção invisível: a diária, artesanal. Em 15 anos, atravessamos crises culturais, cortes de verba, mudanças de governo, rupturas tecnológicas, cansaços invisíveis. Resistimos ao canto de sereia das plataformas digitais. Reconhecemos que há menos meses de abundância e mais meses de sobrevivência e, ainda assim, manter o gesto. Pouco se fala que a continuidade exige que outras ideias não saiam do terreno da imaginação, uma vez que continuidade exige foco. Novas ideias podem matar ideias anteriores por falta de energia.
Se chegamos à edição 200 é porque nunca estivemos sozinhos. O RelevO aprendeu a existir porque encontrou colaboradores que confiam, leitores que carregam exemplares para novos leitores, assinantes que financiam o projeto, apoiadores que acreditam na cultura antes dos resultados, voluntários que ajudam sem serem convocados, livreiros que nos acolhem e pessoas que descobrem o jornal nos espaços culturais e nos levam para casa como quem adota um hábito. A continuidade é o nosso manifesto… e a nossa prestação de contas.
“Uma mulher de preto, lendo o jornal, tomando uma xícara de café num bistrô”, Alessandro Milesi (sem data)
O tempo, quando acumulado, não forma apenas um arquivo. Forma um corpo vivo. As 200 edições não são uma coleção de papéis. São um projeto que aprendeu a crescer ao lado das pessoas que o leem. Com o tempo, percebemos que cada edição funciona como uma espécie de parêntese no calendário. A rotina mensal é um eixo. Assim, manter um jornal de papel, mês após mês, é contrariar a lógica da velocidade. É confiar que ainda existem objetos que exigem demora, que pedem cuidado. Um jornal literário não muda o mundo, mas muda as formas de estar no mundo. Acreditamos que a lentidão também produz comunidade e que o encontro entre leitor e página ainda guarda algum segredo intraduzível em estatísticas. Por isso, continuamos e novamente sacamos o Barão de Itararé: “Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades”.
Ao chegarmos à edição 200, reafirmamos nosso compromisso com esse modo de existir. Publicar textos que não caberiam em outro lugar, sustentar uma curadoria que desafia a pressa, cultivar uma leitura que pede fôlego, acolher formas de expressão que não se encaixam em algoritmos. Continuar, apesar do tempo, com o tempo, pelo tempo, é o que nos fortalece.
Em breve, o fantasma de seu pai anunciará promoções de Black Friday na sua geladeira
“Hamlet, você está buscando maneiras de melhorar os resultados de suas campanhas de marketing?” (‘Hamlet, Horatio, Marcellus and the Ghost’, Robert Thew / Henry Fuseli, 1796).
Já comentamos por aqui que anúncios são um dos maiores propulsores da ação humana. Onde há uma pessoa haverá um anúncio: no transporte público, no elevador, em Marte (aguardem).
Com o digital overlay, já temos até anúncios inseridos artificialmente para poluir cada vez mais qualquer resquício da sua tela em qualquer resquício do seu entretenimento. Ou, no caso, para oferecer uma experiência customizada.
Anúncios representam 98% das receitas da Meta (Facebook) e 76% da Alphabet (Google). Calcule o valor colossal atribuído a essas empresas (US$ 1,5 e US$ 3,5 trilhões, respectivamente) e fica fácil entender como esse recurso se tornou praticamente a base da economia digital¹. E assim você não escapa de anúncios no transporte público, no elevador ou na esteira da academia. Telas são baratas, e onde há humanos há telas, e onde há telas há anúncios. Alguém está pagando para aparecer na tela do elevador com a esperança de que aquilo traga algum retorno a seu negócio.
Por sua vez, geladeiras – algumas geladeiras – passaram a ter telas. Não geladeiras quaisquer. Geladeiras smart, que fazem muito mais que… refrigerar². Consideremos por um minuto que, com o tempo, isso se torne um padrão da indústria. Comprar uma geladeira, instalar um app que integre seu cadastro à geladeira (já consigo me ver suando frio com uma autenticação de dois fatores para associar a geladeira ao meu smartphone). Receber notificações na geladeira. Isso lhe parece realmente inverossímil?
Pois bem, de todo modo, haverá telas. Quem sabe as próprias fabricantes passem a empurrar geladeiras smart, porque afinal telas oferecem oportunidades, e por que deixar de aumentar um pouquinho a receita com uma linha paralela de – tão baratos, tão práticos! – anúncios??? Estou obviamente confabulando; nada é informação — exceto pela confirmação da Samsung de que, bem, hehehe, sabe como é, né, não tá fácil pra ninguém…
Anúncios na geladeira. Este é o primeiro fato deste enclave.
Anúncios. Na geladeira. É realmente inverossímil um futuro em que sua geladeira parte de um plano gratuito que não congela, e para usufruir do freezer você precisa assinar o plano pago (com e sem anúncios, este último um pouquinho mais caro…)? Espremidos entre emerdação e gamificação, estamos realmente tão longe disso?
“É uma forma da gente conseguir gerar monetização e continuar oferecendo todo o nosso serviço, que tem um custo por trás – que não é baixo” (TechnoBlog)
Pois bem, há um segundo fato. Talvez vocês já tenham visto o mentecapto responsável por isto aqui, um app que permite… manter vivo o avatar de um ente querido. As comparações Black Mirror são tão óbvias que nem merecem detalhamento maior³. A ideia é grotesca (por motivos que, a meu ver, também dispensam um detalhamento maior) e, imagino eu, não vá ter grande adesão. Por ora. Até que alguém– quem sabe, quem sabe – amarre melhor as oportunidades.
Talvez alguém que vale trilhões (asteriscos) e é capaz de mover um ecossistema inteiro. Talvez oportunidades como anúncios.
Possivelmente embebido num pessimismo exagerado, pergunto outra vez: é tão inverossímil assim imaginar o avatar da sua avó lembrando-lhe sutilmente que aquela máquina de lavar que você andou olhando (o avatar da sua avó está integrado ao histórico do seu navegador) acabou de entrar em promoção? Na versão gratuita, claro. Pagando um pouco mais, você tem acesso à personalidade completa da sua avó. Uma versão que não sugere apostar na Betano ou vestir Insider. Uma versão que permite addons como agregadores de preços ou ferramentas de gestão (a disciplina da minha avó mantida viva num Kanban).
No lar do futuro, é completamente inverossímil integrar o app da sua geladeira ao melhor app de avatares do mercado? Tela sobre tela. Tudo maravilhosamente conectado (com autenticação em dois fatores). É mesmo improvável escutar a voz de seu pai morto emergindo da geladeira a sussurrar: “Filho, o frango está acabando. Já experimentou o sassami Copacol?”, seguida de um aviso — PARA REDUZIR ANÚNCIOS E CONGELAR CARNE, ASSINE O PLANO PREMIUM?
As pessoas reclamam que não têm mais “tempo para ler”, mas, na realidade, como assinalou o romancista Tim Parks, poucas vezes elas não podem, literalmente, alocar uma meia hora livre no decurso de um dia. O que elas querem dizer é que, quando encontram tempo, e o usam para tentar ler, descobrem que estão impacientes demais para se dedicar à tarefa. “Não é simplesmente que essa tarefa é interrompida”, escreve Parks. “É que existe efetivamente uma inclinação à interrupção”. Não é tanto que estejamos ocupados demais, ou dispersos demais, mas sim que não estamos querendo aceitar a verdade de que a leitura é um tipo de atividade que opera muito de acordo com seu próprio cronograma. Você não é capaz de apressá-la muito sem que a experiência comece a perder seu sentido; ela recusa-se a concordar, pode-se dizer, com nosso desejo de exercer controle sobre como o tempo se desenrola. Em outras palavras, e de acordo com muitos mais aspectos da realidade do que aqueles que nos sentimos confortáveis para reconhecer, ler alguma coisa de modo adequado leva simplesmente o tempo que leva.
Oliver Burkeman, Quatro mil semanas: Gestão de tempo para mortais (Ed. Objetiva, 2022).
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Notícia deste mês: “Documentos internos da empresa mostram que a Meta projetou internamente, no final do ano passado, que obteria cerca de 10% de sua receita anual total – ou US$ 16 bilhões – com a veiculação de anúncios de golpes e produtos proibidos” Forbes.
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Eu, que do fundo do coração não me considero um ludita em nenhum aspecto, resisto muito à ideia de geladeiras e máquinas de lavar smart. Porque, como acabei de apontar (mas vale o reforço), a principal função de uma geladeira é resfriar; e a principal função de uma máquina de lavar, lavar. É óbvio, soa estúpido, mas… aqui estamos. Tudo, afinal, há de ser otimizado.
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‘Black mirror’: criador da série diz que mundo está muito triste para uma nova temporada. O Globo, 2020.