Nesta newsletter, resgatamos textos publicados no Jornal RelevO e já devidamente esquecidos. Dessa vez, trazemos as centrais da edição de maio de 2024.
SÉTIMA ARTE
Cansado do foco excessivo sobre futebol na cobertura esportiva brasileira, o Relevo quis dar voz a uma nova modalidade extraordinária. O problema: não conseguimos entender nada. Confira a seguir o nosso descenso até o coração das trevas.

Jornal RelevO, edição de maio de 2024. Diagramação: André Delavigne.
Eram aproximadamente 19h quando a equipe do Jornal RelevO desembarcou em Serra Talhada (PE) para cobrir a partida do ano. Nada de Copa do Mundo ou Libertadores. Nada de Wimbledon, Interlagos, NBA, X-Games. Nada de Olimpíada.
Não havia bandeiras de Flamengo ou Corinthians. Ninguém se importava com Bernardinho ou Rayssa Leal. Zero referência a Maria Esther Bueno ou Gustavo Kuerten. Nenhuma Hortência, nenhum Oscar. Sem “Ayrton Senna do Brasil!”, “Giba neles!” ou “TAFFAREEEEEEELLLLLL”. Nenhuma camiseta pirata de clube secava atrás da geladeira ou algum trabalhador se preparava para jogar em algum campeonato de futsal de sindicato.
A região inteira estava congelada – em 31 °C – para testemunhar a partida entre Júbilo Solar e Fênix Marinho, o popular Azulão. O palco? Estádio Municipal Nildo Pereira de Menezes, repaginado com novas estruturas de arquibancada, banheiros e lanchonetes. A modalidade? Cosmobol, febre absoluta entre os jovens da região. Neste momento, iríamos citar Tristes Trópicos, do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, e apresentar referências entre práticas dos indígenas da tribo bororos e a nova modalidade, mas, numa simples verificação do detector de uso de chat GPT, descobrimos que isso não fazia o menor sentido e resolvemos, então, não dar sequência nesta relação e apenas chamar a atenção do novo estagiário do Jornal para que ele não cometa mais esse tipo de erro. Sigamos.
“Tudo que sou, devo ao cosmobol”, alega Tó Carvalho. Mas o que é o cosmobol? E quem é Tó Carvalho? É aí que as coisas se complicam.
Para começar, a FBC (Federação Brasileira de Cosmobol) proíbe absolutamente qualquer tipo de filmagem e sequer se dá ao trabalho de divulgar uma tabela antecipada de jogos. A página da instituição na internet (fbc.com.br) é, tecnicamente, um fotolog de 2006 sem qualquer informação sobre missão, visão ou valores, que dirá regras ou um reles Quem Somos satisfatório. A página se resume a dizer que “Somos quem queremos ser”, numa alusão ao Engenheiros do Hawaii que o nosso estagiário tratou de considerar “esqueci aquela palavra lá pra coisa de velho esquisito”, e a contragosto concordamos para manter algum respeito com as gerações posteriores. Na aba Tabela, vemos apenas uma tabela periódica, seguida por uma tabela Fipe de outubro de 2012, seguida por uma imagem de tabela de basquete. Se isso soa como um tiro no pé no contexto comunicativo contemporâneo, o efeito (calculado ou não) foi o exato oposto. Naturalmente, ao ser proibido, o brasileiro ficou curioso, afinal, quanto mais próximo das práticas do Jogo do Bicho ou dos efeitos psicológicos do Jogo do Tigrinho, maior o potencial viral na cultura tupiniquim ou tupinambá, de acordo com Claude Levi-Strauss.
O regulamento do cosmobol é complexo. Trata-se de um esporte, quanto a isso não há dúvida. Porém, a modalidade – descrita por um sociólogo local (desempregado) como um “metaesporte revolucionário capaz de misturar todos os esportes do mundo” – tem regras um tanto confusas. Natural para uma proposta tão ampla. O fato é que o regulamento, de acordo com a FBC – não confundir com o autor de ‘Se Tá Solteira’ e outros hits contemporâneos –, parte de um manuscrito asteca supostamente encontrado pelo empresário Maurício Sapecca, que se encontra foragido, mas topou conversar com o RelevO por meio de videochamada sem revelar de onde falava.
Hesitante, reticente e nada asteca, Sapecca trafega entre diferentes camadas da picaretagem, respondendo a processos que, grosso modo, remontam a diversos esquemas de pirâmide. No entanto, algo acontece quando ele fala sobre cosmobol. Seu olhar muda, sua voz ganha vida. Após minutos e minutos e minutos de ladainha, bravatas e dois comentários assustadoramente incestuosos, Sapecca parece… humano. É possível ouvir verdade nele, que – juramos – soa como um genuíno descobridor de um artefato místico. Se o Universo cedeu tamanha dádiva a um boçal para nos testar ou se ele simplesmente desenvolveu sua palermice a ponto de explorar outras esferas do logro, ainda não sabemos. O embusteiro alega ter herdado o documento de um cliente endividado. Perguntamos se era um pergaminho, ao que ele respondeu “pega a minha” e voltou ao normal. A partir dali, não descobrimos mais nada, além do fato de que os presidentes dos clubes de cosmobol são comunicados sobre as partidas por recados entregues por motoqueiros chamados Arnaldo. Todos eles se chamam Arnaldo, e se não há um Arnaldo disponível, não há jogo.
Pois bem, antes de fugir para um destino desconhecido (que claramente é Dubai, e não adianta trocar o fundo do vídeo por um papel de parede de escritório para esconder), Maurício Sapecca juntou amigos, clientes, futuros réus, futuras vítimas e demais velhacos para testar aquilo que – supostamente – aprendera com o – suposto – documento. O resultado foi a primeira partida brasileira de cosmobol, registrada no Facebook de um idoso (tautologia?) presente no local, o ginásio Troizinho Sapecca, construído ano passado com os fundos funestos da XKLNQY, holding de Sapeccca, e nomeado em homenagem a seu dobermann. As equipes eram justamente Júbilo Solar e Fênix Marinho, e não sabemos quantas existem na “divisão prata platinum AstroBet dois”, curiosamente a divisão de elite da categoria.
Quinze dias depois, 45.000 pessoas se engalfinhavam para conferir Lua de Sol contra Casco da Vama. Metade de população de Serra Talhada. Não há registros em vídeo ou testemunhas propensas a falar. É como um transe coletivo. Em uma suposta filmagem clandestina de 14 segundos de um Motorola V3 obtida com muito esforço, o RelevO viu duas equipes de muita… gente. Um caos. Uma atleta, supostamente Sonya “La Bruja”, trazida diretamente de Minsk, Bielorrússia, executou um movimento que só podemos traduzir como a mistura de um… kickflip com um forehand com um toco no garrafão com uma puxeta. Nunca conseguimos falar com Sonya ou comprovar sua existência.
O povo foi à loucura, talvez esperando uma parábola que explicasse com alguma lógica o motivo de, antes de todas as partidas, executar-se a Cerimônia do Chá Verde na abertura dos jogos, em que jovens entram correndo em campo em meio a uma fumaça que muito se assemelha àquela proporcionada por cigarrinhos de artista, para incômodo do Ministério Público e do Conselho Tutelar, mas para deleite de Juninho Antunes, o Perninha, que havia encantado seus amigos ao noticiar que a “tocha olímpica” estava vindo para Serra Talhada, e então lhes presenteou com “o maior baseado já visto no Nordeste inteiro”. Consultado pela reportagem, o autointitulado influencer apenas repetiu a história enquanto sua mãe chorava ao fundo, vendo uma novela do Canal Viva.
Marlon Breno, mais conhecido como Bronco, é uma figura central para entendermos o que é o cosmobol. Responsável pelos direitos de transmissão do cosmobol – que, repetimos, não pode ser transmitido –, em entrevista exclusiva (e inclusiva também, pois ele fez questão de trazer à nossa redação um sagui de estimação chamado Pipico, detentor, segundo ele, do dom da clarividência), Bronco contou já ter contrato com a AstroBet, a primeira casa de apostas voltada a amantes de esportes e astrologia, fundada pelo ex-jogador Pepeco (também foragido).
Perguntamos a Bronco por que ele gastou uma nota para transmitir uma modalidade cuja transmissão é expressamente proibida pelo suposto código asteca, e ele apenas piscou. Sentíamos certo improviso em sua nonchalance, o que logo ficou claro pela maneira impulsiva com que o garoto devorava biscoitos de champanhe, um a um, freneticamente, tal qual um dragão-de-komodo após jejum intermitente. “Ok, meu pai é meio forte no agro em Mato Grosso e acabei torrando parte do patrimônio dele — mas vai rolar, nós estamos em contato com a FBC”.
O canal GOAT também teria manifestado interesse em transmitir o campeonato, contudo Bronco ainda não teria se pronunciado porque evita fechar acordos importantes “com gente de Áries” ou quando Pipico está de mau humor. Perguntamos se Bronco ao menos havia assistido a alguma partida da modalidade, e logo percebemos que tínhamos desperdiçado uma tarde inteira.
Por fim, Tó Carvalho. Suposto craque em um esporte “cuja individualidade não existe, pois mais que entrosamento é preciso haver a verdadeira simbiose completa, todos são um só no certame holístico do cosmos” – em suposta tradução do suposto pergaminho asteca –, ele evita tecer comentários muito elaborados. Até porque, visivelmente, assim como muitos craques do esporte mais amado do Brasil, Carvalho não consegue. O atleta vem de um contexto simples, modesto, fod*** mesmo, e claramente não desenvolveu a cognição em seu grau máximo por ausência de comida e excesso de violência familiar em anos formativos. Segundo alguns entusiastas corajosos o suficiente para compartilhar seu ânimo conosco, essa é sua principal virtude. Tabula rasa, Carvalho reuniria toda a limpeza mental do zen-budismo para não só praticar, mas ser o cosmobol.
A imprensa de Serra Talhada também especula que Carvalho estaria passando por dificuldades no amor. Tentamos extrair informações, mas fomos recebidos por um olhar inocente e vazio.
O que, afinal, é o cosmobol? Como sua prática manteve tamanho sigilo até agora? Suas partidas serão expostas? O cosmobol será mainstream e, depois, “meio paia”? Estamos todos envolvidos em um novo tipo de seita com um novo conceito de esquema de pirâmide? Por que Serra Talhada? Como sempre, o RelevO vai atrás de respostas, não as encontra e fomenta aquele discursinho perdedor de que o importante é fazer as perguntas certas. A Federação Brasileira de Cosmobol ainda nos ignora, mas prometemos não desistir. A quem queremos enganar? Já desistimos: melhor ver o Mengão mesmo. Povo esquisito.
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