EDITORIALBom dia! Bem-vindo(a) à Enclave #128, a newsletter híbrida presencial quatro vezes por semana. Nossa última edição tratou de ambientação e caracterização, dois dos mais importantes elementos narrativos. Hoje, damos sequência a uma habitual choradeira a respeito da vida moderna. A edição atual, sobre a ubiquidade das telas, estende a série de incômodos ranzinzas do nosso cotidiano:
Muito em breve, a edição de outubro do RelevO estará disponível em nosso site. Já estamos preparando a de novembro – e você pode contribuir! (Contexto aqui). HIPERTEXTOPor menos telasO que um avião, um ônibus, um elevador, um carro, um restaurante, um bar, uma mesa de trabalho, uma mesa de jantar com criança, um bolso e uma bolsa têm em comum em 2024? Você, leitor(a) inteligente, não precisa da resposta. Essa não é uma reclamação nova, inédita; um novo insight, a fresh take. Nada aqui é. Lembro-me do exato momento em que o excesso de telas deixou de ser “algo que acontece” para se converter em “algo que me tira do sério”, esse eterno sinal do envelhecimento. Foi num avião. Janelas fechadas (lógico…), tudo escuro. Um escuro confortável. Exceto pela centena de telas ligadas, irradiando luz. Uma ao lado da outra. Uma atrás da outra. Séries; filmes; mapas; menus, tudo com muito brilho. Aquele mal-estar representado em Wall-E. No escuro, afinal, percebemos mais facilmente. Seja num show, seja num cinema, seja num ônibus, alguém invade a paz da sombra com sua luz não solicitada, uma vela dopamínica que não queima, mas acossa. Porque telas, afinal, secam os olhos. O que não é uma afirmação científica – a Enclave não gosta da ciência porque a ciência cria telas! –, mas empírica. Ah, sim, as telas alavancam um dos maiores propulsores da sociedade: anúncios, talvez o motivo número um de sua ubiquidade¹. Ademais, telas carregam consigo um risco colateral diabólico, o pior pecado da modernidade: barulho. Uma TV no mudo incomoda pouca gente; uma TV que te obriga a escutar um comentarista de futebol – literalmente a profissão mais fácil de todo o planeta² – indignado com alguma trivialidade esquecível às 13h04 de terça-feira… complica. Desanima. Machuca. E isso nos remete àquele meme: Claro, do ponto de vista da nossa alienação individual – agora tão fomentada quanto intermediada pelas telas do celular –, talvez nada tenha mudado³. Porém, tecnicamente, telas são (ou podem ser) piores, mais intrusivas que qualquer distração em papel. O máximo que o jornal do passageiro ao meu lado pode me atrapalhar é, quem sabe,… me sujando com tinta? O leitor xingando um colunista? Por sua vez, a tela, além da luz infinita da qual não consigo me desvencilhar sem uma venda⁴, ainda corre o risco de trazer sons. Naturalmente, uma das maiores aflições da vida em sociedade é lidar com a falta de respeito ao silêncio alheio. Aliás, existe algo de macabro quando observamos alguém contemplando uma tela no escuro. Uma gastura desconfortável como uma traça caminhando pelo chão limpo da cozinha. Repare – e não se preocupe, porque o usuário da tela estará sugado demais para perceber sua curiosidade –, é assustador. Trata-se de uma catarse como qualquer outra, porém feia. Passiva, sem elemento estético. O que sobra de mais triste é justamente a automação do processo: é evidente que precisamos de telas porque o silêncio perturba, o escuro incomoda, o tédio mata ou o bebê não se comporta (e os pais estão cansados, provavelmente porque passaram o dia inteiro sentados olhando para telas). Then again, nenhuma conclusão inédita. Mas esse excesso de telas derruba qualquer alma. Não estou dizendo que o problema é pior que, não sei, a ameaça da fome, de uma guerra, da poliomielite ou algo assim. Nem de longe. No entanto, os estressores contemporâneos irritam, descalibram nossa psique de uma maneira que uma ameaça real – inimigo palpável, claro, concreto – às vezes não aflige. Pode ser mais ameno, mas não deixa de ser diferente. Algumas pessoas lidam muito bem com grandes estressores, mas sofrem com o que parecem apenas amenidades ou detalhes. Precisamos urgentemente de menos telas. No trabalho, no lazer, em viagem, durante refeições. Trabalhamos com telas, descansamos com telas, dormimos com telas. São injeções de angústia. Constatá-lo é um clichê; reclamar, uma tolice – mas o que mais resta durante uma guerra perdida? Sent from my tela BAÚMaracujá
João Cabral de Melo Neto. Revista ISTOÉ Senhor n. 1059, 3 janeiro de 1990. 1 Lembrando: “para se mexer, um indivíduo muito provavelmente busca (1) conquistar alguém, (2) impedir o sono de um sem-teto ou (3) inserir um anúncio em algum lugar. Quase todo o desenvolvimento do planeta na Idade Contemporânea pode ser explicado a partir dessas três fontes de motivação. Se ou quando o ser humano morar em Marte, será para impedir mendigos de dormir de graça lá. [Ou para inserir anúncios].” 2 Como alguém que ao longo da vida consumiu quantidades repreensíveis de futebol (desprovido de qualquer orgulho, e, muito ao contrário, apenas o consolo de que, não fosse o futebol, seria algum passatempo pior, como plastimodelismo ou música celta), essa é uma afirmação fácil. Muitos comentaristas de futebol não são capazes sequer de enxergar o jogo, e, pior que isso, a função simplesmente dispõe de zero pele em jogo (c* na reta). Você pode falar qualquer coisa a qualquer momento e nunca ser cobrado por isso, como alguns macroeconomistas — ser um macroeconomista ruim também é uma ótima escolha para embromadores. 3 E, pra ser criterioso, isso já uma concessão. Claro que tudo é relativo: posso ler puro lixo no Jornal e posso usar o celular para fins estéticos ou utilitários. Mas convenhamos, com honestidade intelectual, alguém realmente acha que, *no geral*, a experiência no celular no espaço público não é mais dementalizadora que a da leitura analógica? Te convido a pegar um ônibus e testar. Até pela própria experiência melancólica do deslocamento para fins de trabalho, principalmente em função do desconforto físico, é muito mais convidativo distrair-se com qualquer Reels de fofoca do que conseguir ler Wittgenstein. 4 Outro problema: se eu levantar meu celular num ambiente escuro, você simplesmente não vai conseguir não olhar. É uma questão básica de contraste e de estímulo-resposta. Se eu mantiver esse celular erguido enquanto converso no WhatsApp, você não vai conseguir não ler. DIMINUAM O MALDITO BRILHO. |
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quinta-feira, 17 de outubro de 2024
Deprimido por telas
quarta-feira, 9 de outubro de 2024
TOVI, primeira torcida organizada a defender que "é só futebol"
TOVI, primeira torcida organizada a defender que "é só futebol"“Tiro, porrada e… videogame” e “não é só saneamento básico” são algumas das campanhas previstas pela instituição. Reportagem do RelevO foi conferir de uma distância segura os desdobramentos desta hist
Nesta newsletter, resgatamos textos publicados no Jornal RelevO e já devidamente esquecidos. Dessa vez, trazemos as centrais da edição de março de 2024. Um aviso antes do nosso texto: o RelevO está coletando respostas para suas próximas centrais. Ajude nosso amigo Bolívar Escobar contribuindo com os Desclassificados do Jornal! Trata-se de uma série de anúncios supostamente irrelevantes, ou desanúncios. Este é o seu momento de não brilhar. Basta clicar aqui e responder. Jornal RelevO, março de 2024. Diagramação: André Delavigne. TOVI, primeira torcida organizada a defender que “é só futebol”“Tiro, porrada e… videogame” e “não é só saneamento básico” são algumas das campanhas previstas pela instituição. Reportagem do RelevO foi conferir de uma distância segura os desdobramentos desta história. O Clube Atlético Sintropense nunca esteve tão próximo do topo. Invicto na segunda divisão do Campeonato Capixaba, a equipe de Vitória precisa de apenas um ponto nas últimas quatro rodadas para confirmar sua ascensão à elite do estado (ou algo semelhante). Um feito e tanto para uma instituição que largou o semiamadorismo há apenas dois anos, com o fim da gestão de Pepeco. O folclórico ex-jogador decidiu parar de morar dentro de uma garrafa para, quem diria, trabalhar na comissão técnica do Al-Gharafa, no Catar. Tamanha propulsão se deve a um alinhamento atípico entre diretoria e adeptos: sua torcida mais ou menos fiel, a Torcida Organizada Vida Independente (TOVI), intitula-se o primeiro coletivo de torcedores da história do balípodo a defender de forma irredutível que futebol é, quem diria, tão somente futebol. O que isso significa? Conversamos com Andrigo, o popular “Facada”, líder da instituição. “A TOVI começou espontaneamente porque eu e uma dúzia de torcedores tínhamos uma ideia em comum: esse papo de ‘não é só futebol’ já encheu o saco. Todo mundo já entendeu, p*rr*”, contextualiza um intenso Facada. “Não nego meu passado. Infelizmente, o apelido pegou. Já fui jovem e inconsequente. Fora daqui ninguém me chama de Facada: sou Andrigo Soares, gerente de TI de uma resseguradora listada na Bolsa. Mas isso a imprensa não repercute”, sentencia. O repórter do Jornal pergunta sobre as ações da Vale (VALE3). “Você diz a Desportiva de 1996?”. Aparentemente, tudo começou quando muitos integrantes da antiga facção completaram 35 anos e começaram a ter lombalgia, mas Andrigo nos traz outro viés. “As torcidas se digladiam por muito pouco. Essa relação de dominância – ‘a gente torce mais que vocês’ – é tão besta. A TOVI bate no peito e responde de boca cheia: ‘sim, vocês amam mais seus clubes do que nós amamos o nosso. Mas quantos integrantes da sua torcida amam a esposa e os filhos?’. E vou te dizer: aí só se ouve silêncio”, complementa o líder da TOVI. “Acreditamos ser a primeira torcida organizada do mundo que realmente não esquenta a cabeça após o jogo: perder de 3 a 0 pode ser desgastante, mas chato mesmo é encontrar um chefe injusto na segunda-feira ou não querer voltar para casa por conta de problemas familiares… Ou voltar depois do horário combinado…”, derrama misteriosamente Andrigo enquanto apaga mensagens no celular. “Mas apago só pra mim: é o esquema tático que melhor funciona contra os ataques em massa da Claudinha, hahahaha”. Na sede da TOVI, na Praia do Canto, entre panfletos e classificados, a estrutura é de uma grande e saudável sala de convivência, com muitos puffs, chá de camomila livre e o looping eterno de um DVD do Natiruts na tevê de 35 polegadas. Entre os requisitos para adesão ao grupo, consta doar sangue periodicamente, acompanhar o clube do livro da torcida e não ter nenhuma tatuagem que faça referência ao time. “Eu mesmo tive que cobrir o escudo do Sintropense com uma ampulheta – ficou da hora”, conta Mateus Favero, aproveitando a oportunidade para tirar a camiseta e mostrar a arte do peitoral direito, antes de palavrear detalhes específicos sobre a referência estética de cada uma de suas 23 tatuagens. Nosso repórter também mostrou suas duas tatuagens do Relevito e uma flor de lótus que começa no cóccix – “é a flor de lottix”, ri, desacompanhado. Parte do sucesso do Sintropense dentro de campo se deve a uma contratação inusitada: o meio-campista chinês “Feng Shui”, emprestado acidentalmente pelo Nei Mongol Zhongyou (内蒙古中优). A equipe oriental visava oferecê-lo ao Vitória da Bahia como uma estratégia de marketing no Nordeste brasileiro, mas, desconhecedor de algumas camadas de representatividade esportiva, acabou disponibilizando o atleta a todas as agremiações de Vitória-ES. Atento, o diretor de futebol Luigi Semprassino foi o primeiro a enxergar potencial na tratativa. Tido como peça-chave nos onze do treinador Samuca, conhecido pelo uso extenso da mão de obra asiática “mais acessível” em outras esferas da atividade econômica, Shui é líder de desarmes e de assistências no Capixabão – isso enquanto domina apenas as frases “passa pra mim”, “chuta pro gol” e “não é gonorreia”. Feng Shui, cujo nome de batismo, Zhang Jie, foi alterado também por questões mercadológicas, virou Shuizinho e caiu nas graças da TOVI (e, estranhamente, de um grupo de taxidermistas das Filipinas, mas preferimos não especular sobre isso na reportagem por falta de dados mais concretos ou por não sabermos se Filipinas é um país ou uma ilha. O repórter, outro estagiário malpago e indisposto da geração Z, também não sabe diferenciar Filipinas de filipetas – principalmente por nunca ter tocado em uma. Filipeta, no caso). Luigi Semprassino, por sinal, é um dos maiores aliados da TOVI. “Confesso que a situação fica até estranha. Trabalhei dois meses no Vasco e quebraram todos os vidros do meu carro porque contratei um lateral-direito canhoto. E pra ser justo, a verdade é que o Celsinho não era canhoto nem destro. Como eu ia saber?”, defende-se. “Aqui eu venho trabalhar com um sorriso no rosto”, afirmou, sorrindo com algum atraso, como se tivesse de explicar o simbolismo. “Às vezes, até sinto falta da pressão…”. Segundo o único opositor da torcida TOVI no Espírito Santo, Charlinho da 7, que considera a TOVI – numa tradução livre – “um bando de corno chupa-c*”, em um tuíte publicado às 4h57 e já apagado, Luigi teria visto o fantasma de Eurico Miranda no vestiário do Sintropense e “tocado a si mesmo de maneira suspeita” (o que, na verdade, é uma tradução nossa para “esse b*st* desse Luisi [sic] toco uma vendo fantasma do Eurico seu velho p*t* filho da m*rd* eu vo te apaga”). Shuizinho já tem despertado a atenção de olheiros do mundo todo: a diretoria – hoje com estrutura de SAF – calcula fazer sua primeira grande venda nessa negociação, alavancando o Sintropense para os próximos anos, não sem antes lançar a campanha “O melhor do Oiapoque ao Shui”. Quem está rindo à toa é o CEO do clube, Charles Rindatoa (“na verdade vem do francês Hindatoi, ãn-da-to-á’” – ele educadamente solicitou que explicássemos). Enquanto o elenco se prepara para a ascensão no Campeonato Capixaba, a torcida aquece a garganta com novos cantos. Entre eles, destacam-se “Acabou a paz; eu não vou viajar no inverno!”; “Ôr ôr ôr, queremos doador!”; e “Mil gols, mil gols, mil gols, mil gols, mil gols! – tanto faz, tanto faz!, o meu filho se formou!”. As músicas são escolhidas por votação e não podem conter mensagens discriminatórias ou que incitem violência – “nem mesmo contra carioca ou argentino”. A única orientação, segundo a página oficial da torcida (“apenas no Threads, que é menos agressivo”), é evitar conversar muito tempo com corintianos. “Nos baseamos no livro A arte da guerra para torcedores, do nosso confrade Julinho Pão na Chapa. “A gente pode ser um pouco sem graça, mas ao menos estimula o uso de chuteira colorida – esse papo de futebol raiz também já encheu o saco”, comenta o tesoureiro da TOVI, Marcos Planilla, enquanto projeta o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço na sede da torcida. “A cultura é o alimento da alma. Se os aliens visitassem a Terra, o que eles aprenderiam conosco? O que levariam daqui? Será que vale perder a cabeça por conta de um empate cedido depois de sair ganhando de dois a zero?”, medita ele, que se empolga com o assunto “aliens” e toma bons quarenta minutos do repórter com teorias não requisitadas. Os mais jovens da torcida se inspiram em figuras como Facada e Planilla (“exceto quando ele entra naquela noia de ETs”). Luizinho “Cano Grosso” Santos, o CG, que largou a pichação e hoje se dedica à pintura abstrata – “cara, isso tira os demônios do meu corpo” –, associou-se à TOVI há um ano e já se considera um novo indivíduo. CG promete uma pintura ao RelevO e pede que aguardemos sua próxima obra. Entre uma música do Natiruts e outra música do Natiruts, ele se concentra com pincéis, rolos e espátulas em uma tela branca cedida pela papelaria local – também patrocinadora das mangas da camisa do Sintropense. Depois de 84 minutos de dedicação total, constatamos que o resultado não chama atenção e não agradaria a críticos de arte, tampouco ao tipo de pessoa que compra caricaturas no centro da cidade ou telas em centros acadêmicos. Seus demônios são desinteressantes, mas ele parece um cara legal. No domingo, contra o lanterna Locomotiva Circular, o Sintropense precisará de apenas um empate para confirmar a subida à primeira divisão – e, principalmente, o início da campanha de arrecadação de chocolates para abrigos locais na Páscoa. Assine para receber de graça baboseiras como esta (custa caro).
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