CALCE TÊNIS
Estava
lendo a interessante crônica “Alexandria – A Queda”, do Francisco Marshal, no
suplemento DOC do jornal Zero Hora de Porto Alegre, a qual fala de um livro
chamado “A Biblioteca Desaparecida”, do Alexandre Cânfora. Pensando sobre tudo isso: Alexandria,
bibliotecas, livros, importância da leitura como fonte de desenvolvimento... Resolvi
escrever um texto.
Como
eu procedo para escrever um texto? Vou juntando e largando num papel, ou
melhor, no computador, palavras toscas, rústicas, soltas, que parecem sem
sentido, mas são as palavras principais, essenciais. Depois que larguei todas
essas palavras, formo frases e pego essas frases e junto com as palavras
toscas. Para isso acontecer não posso ter interrupção; tenho que ficar
concentrada. Vou formando essas frases na minha mente e vou juntando nas
palavras toscas, até formar um texto.
Até
que fui interrompida:
- Dona Simone o que a senhora acha de eu
descongelar um peixe para o jantar de hoje?
Não
sei nem o que eu vou comer no almoço! Vou ficar preocupando-me com o jantar? –
penso comigo.
- Neguinha, estava pensando em ligar para X
e Y para sairmos amanhã a noite e tomarmos uma cervejinha. O que acha?
O
que eu acho? O que eu acho é que não posso simplesmente ficar sem responder
para pessoas tão queridas! Não consigo ficar concentrada num texto e deixando
pessoas ao meu redor tentando falar comigo e eu colocando uma parede invisível
entre nós. Não posso. Não consigo fazer isso! Facilmente desconcentro-me do
texto e respondo às pessoas que estão a minha volta aguardando pela minha
resposta, mas isso faz com que eu perca o fio da meada.
Como
fazer para retornar ao fio da meada? Tentei relembrar as frases que eu precisava
juntar nas palavras toscas, mas as frases não vieram! Levantei e pensei: - Quem
sabe se eu fumar um cigarro ou um charuto, servir um uísque e ir à sacada e
olhar para o Mediterrâneo como vi fazer em um filme do Hemingway? Não dará
certo porque aqui não tenho o Mediterrâneo. Não fumo. Uísque talvez. De vez em
quando. Ou um vinho? Mas isso não iria fazer as frases voltarem à minha mente.
O
que mais posso fazer? Já sei, pensei comigo. Calçarei tênis! Isso! Vou calçar
tênis e ir para a rua caminhar. Pensar na vida; pode ser que as frases voltem.
Foi
o que fiz. Coloquei o tênis e andei cerca de dez quarteirões. Fui indo...
Indo... Fiquei relembrando de todas as palavras toscas e de todas as
interrupções, mas as frases não vieram; as benditas frases que eu preciso
juntar nas palavras toscas!
Ao
final dos dez quarteirões, já cansada de caminhar, abaixei minha cabeça quase
encostando nos joelhos, dei uma esticada, uma alongada no corpo, retornei a
posição inicial, respirei fundo uma meia dúzia de vezes... Enchia o pulmão e
soltava... Fui me acalmando... Retornei para casa... Mais dez quarteirões de
retorno. Lembrei-me das palavras toscas e não é que as frases foram surgindo?!?
As frases foram se moldando na minha mente; foram se juntando nas palavras
toscas e foi formando aquele texto inicial; exatamente aquele que eu queria!
Pronto!
Essa
é uma tática superpoderosa para resolver alguns problemas: calce o tênis! Não
está conseguindo dinheiro para pagar as contas? Calce tênis. Está com falta de
concentração para estudar? Calce tênis. Tem alguma questão para resolver? Calce
tênis. Alguma dúvida para esclarecer? Calce tênis. Está difícil de explicar?
Calce tênis.
Calce
tênis e aproveite para olhar as árvores, escutar os pássaros, desejar um bom
dia e conversar com as pessoas que encontrar em seu caminho.
Calce
o tênis e libere a endorfina e a serotonina que são analgésicos naturais
produzidos com a atividade física, dão aquela sensação de bem estar, regulam as
emoções, reduzem o estresse e a ansiedade, enfim trazem a tal felicidade!
Eu
calcei o tênis e resolvi meu problema!
Retornando
ao conjunto de palavras toscas, já estava quase chegando em casa e pensando:
-
Vou para o computador e jogo todo esse texto que está pronto na minha cabeça.
Ao
chegar em frente ao prédio onde moro, percebi que não tinha energia elétrica. O
que será que aconteceu? O elevador não funciona. Como vou subir tantos andares
pela escada após uma caminhada pesada como essa?
Vou
dizer o que aconteceu: os danados de dois pombinhos apaixonados resolveram namorar
nos fios de energia e deu um curto - ou seja lá o nome que for. Deu um estouro
muito forte. Parece que queimou o transformador e a energia do prédio estava
apenas em uma fase. E aí fiquei no térreo descansando e esperando a energia
voltar ao normal.
E
o meu texto? Irá todo para as cucuias de novo? Do jeito que sou desconcentrada,
ele certamente sumirá da minha memória rapidamente. Será um fracasso! Já ia
entrar em pânico quando lembrei que estava com o celular e aproveitei-me do
gravador de voz e salvei o texto!
Simone
Possas
(escritora
gaúcha de Rio Grande-RS,
membro
da Academia de Letras do Brasil/MS, ocupando a cadeira 18,
membro
correspondente da Academia Riograndina de Letras,
membro
da UBE/MS – União Brasileira de Escritores,
autora
dos livros MOSAICO, A MULHER QUE RI e
PCC,
graduada
em Letras pela UCDB,
pós-graduada
em Literatura,
contista
da Revista Criticartes,
blog:
simonepossasfontana.wordpress.com)
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