Por Cleber Arantes
Todos os dias ao sair para a labuta diária, cruzam inúmeros personagens pelo caminho do velho sapateiro, pessoas que aos olhos de alguém sem o seu tato passariam despercebidas, como o vendedor de flores, vendendo romantismo e não meras plantas, o mendigo, que mostra não só a miséria nua, mas as mazelas do capitalismo selvagem em combate aos excluídos. E uma figura sui generis que desperta, na sua monótona caminhada, mais atenção ainda. O músico descalço que toca seu violino com maestria, pelas calçadas da urbe ensandecida, que não tem tempo para ouvir Beethoven no vaivém frenético dos transeuntes.
Criticado, muitos se perguntam por que o mesmo não vendia o violino e comprava um par de sapatos, mas se assim o fizer acaba sua arte, o seu trabalho e o seu sonho.
Mas para o sapateiro o dia começa cedo, sua sinfonia é outra, que não o concerto, e sim o conserto. O barulho ensurdecedor das máquinas ligadas nem o perturbam mais. Deve ser por isso que contratou um ajudante surdo, para que não ficasse com moucos ouvidos como ele estava, causado pelo ofício.
Desde cedo, antes mesmo de pensar em sapatos, ou em tê-los, o sapateiro já era adepto da leitura, pois o pai, conhecido por seus versos boêmios sempre lhe incentivou na leitura.
Apesar de “alérgico” ao trabalho árduo, seu progenitor nunca se apartava de um clássico, Dostoievski, Julio Verne, Dante e seu inferno dantesco, alguma coisa de Shakespeare e não raro o via envolto numa profunda análise de Freud.
Insistindo para que o filho lesse, estava tentando mudar seu destino. Ainda aprendeu na infância sobre um tal Marx, que segundo seu pai não era lá muito cristão e que para esse homem, onde há trabalho há exploração. Música sempre as clássicas também. Mestre no piano, o pai lhe inspirou a gostar de uma boa ópera, de sinfonias, música de gente que pensa, segundo ele.
Envolto em seu mundo de solas e couro, de martelo em punho e preguinhos no canto da boca, a imagem do músico descalço não lhe sai do pensamento.
Como pode tocar tão bem, e ele próprio sempre quis ser um violinista.
Por vários dias passava pelo homem, ouvia sua música, bem tocada por sinal, dava-lhe alguns trocados, mas não lhe dirigia a palavra.
Qual seria o real motivo que o fazia pensar na condição daquele homem?
Após analisar por semanas aquela situação, vem a sua mente uma ideia como que um lampejo, e em meio ao expediente sai em desabalada carreira e faz uma proposta ao estranho do violino:
— Dou lhe um par de sapatos se me ensinar a tocar o violino, você aceita? E o homem ainda atônito pela proposta inesperada diz um sonoro: — SIM.
Retirando um sorriso de satisfação do velho sapateiro. No dia seguinte, o homem dirigiu-se à sapataria e começaram a insólita troca, uma alusão ao velho escambo dos portugueses de outrora. A partir de agora o violinista venderia sua arte, mas por uma boa causa, uma proteção para os pés, além de passar adiante o seu talento, dividir com outrem sua nobre arte.
E assim passaram-se longos dias em que o mendigo, agora bem calçado por sinal, ensinava a sua arte ao sapateiro que por várias horas diárias abandonava seu ofício principal para se dedicar ao aprendizado da música, da arte de tocar.
Uma pena seu nobre ajudante não poder ouvir os ensaios, ou mesmo as desafinações durante o árduo aprendizado.
Como sabia que seu patrão era meio “esquizofrênico”, não deu muita atenção aos concertos matutinos.
Para o violinista estava sendo uma experiência muito diferente, de indigente a professor, além do belo par de sapatos de bom couro, levou uma boa quantia de gratificação e o orgulho de se saber útil, pois sua música lhe possibilitou algo, contrariando os céticos que lhe diziam: música não enche barriga!
O velho sapateiro, enquanto aprendia, ia relembrando seu pai, tão dado ao trato cultural, que apesar de boêmio e alérgico ao batente, deixou um legado de cultura, um misto de saber com ócio improdutivo. Ficaria muito mais orgulhoso em vê-lo músico do que percebê-lo sapateiro, arrumando sapatos novos e velhos, na maioria das vezes com odor não muito agradável. Com toda certeza, bateu a convicção de que o pai preferiria ver seu filho concertando a consertando.
Para ser um profissional do violino pode levar anos, até décadas, mas persistência é algo que o sapateiro conhece bem, domar a dificuldade como amaciar uma sola, ter o aprendizado como desafio.
E a vida tem desígnios nada convencionais, o homem agora não mais seria conhecido velho sapateiro e sim como o sapateiro violinista, o erudito, como sempre sonhou o pai, que sempre dizia nunca ser tarde para realizar um sonho.
Eis a história de um velho sapateiro culto, que apesar dos empecilhos, não se deteve diante eles.
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