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quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Crônica do dia: Charlotte! Em negras cósmicas tessituras astrais...

Crônica do dia: Charlotte! Em negras cósmicas tessituras astrais...

 

''Há uma orquestra desarmônica em caos

Tentando destruir a minha não-existência

Mas quando um homem

Pretensamente negro se levanta

A terra deveria tremer! Mas ela não se move. ''

Samuel da Costa

 

Em tempos idos, um certo furor de indignação e horror, se abateu na minha cidade e nas cercanias, pois um escândalo de maus tratos, em uma casa de repouso para idosos, na nossa antiga capital federal. Por Deus, eu bem que gostaria de morrer jovem, nessas horas, mas o caso aqui não sou eu e sim uma história, que o destino fez soprar nos meus ouvidos desavisados. Para quem conhece bem os meus relatos, onde exponho os meus hábitos e costumes, sabe que gosto de ser levada pelas areias do destino. Então vamos ao que interessa!

A Praia dos Amores é um bairro, que fica no limite da minha cidade, com a decadente, portuária e proletária cidade vizinha, que usurpou um pedaço territorial, da cidade onde nasci e vivo atualmente. Mas isto é uma outra história insólita, que eu vou e deverei dramatizar mais tarde. Praia dos Amores é um bairro requintado, onde a maior parte territorial do bairro é uma morraria coberta pela mata-atlântica. E para os nossos padrões, possui uma extensa orla marítima e pequenas praias agrestes de difícil acesso.

  Então lá estava na Praia dos Amores, eu sozinha, caminhando pelo deck de madeira de acesso à praia, passarela coberta de areia fina, ia eu para uma praia agreste com as suas areias mornas, em um outono pela manhã, então vi algo surreal. Era a baixa temporada e é comum ver essas cenas por aqui, contudo a cena que vi era no mínimo estranha e inusitada, no seu conjunto da obra. Pessoas de idade avançada, ocupando a faixa de areia, com as suas tendas sofisticadas, pegando ondas, deitadas em esteiras, sentados em cadeiras de praia. Mas o surreal, não era a cena em si, mas a quantidade, a pluralidade de banhistas, naquela parte da cidade, tão carente de infraestruturas turísticas. Os veranistas de idade avançada, eram ativos, bem vestidos, vívidos, agitados, conversavam animadamente, riam, bebiam coquetéis coloridos, cervejas e vinhos. Usavam típicos trajes praianos, sem quaisquer medos, temores ou vergonhas. Já outros eram mais discretos, vestidos de forma simples, pareciam doentes, decrépitos e até macambúzios, alguns com sorrisos contidos, simplesmente estavam contemplando o oceano Atlântico. Todos e todas estavam trajados de peças típicas de turistas à beira mar. Um agito deste, com este público em especial, não ocorria nesta parte, tão remota e desassistida da cidade.

Em meio a enorme turba de simpáticos e simpáticas, sobreviventes de guerras, crises econômicas, avalanches tecnologias, pandemias, imigrações, migrações, divórcios, perdas de todas as ordens! Alguém se destacou, o que me parece uma coisa natural, em meio a tantas pluralidades. Aqui, eu não vou confidenciar como nos aproximamos, pois o fato é que simplesmente, nos aproximamos.   Ela se apresentou com o nome de Charlotte, pelo menos é assim que eu vou apresentá-la, uma senhora idosa, muito bem vestida, com roupas e acessórios exclusivos, logo notei e Charlotte confirmou. Eram presentes de uma sobrinha-neta, uma sobrinha-neta estilista de profissão bem conceituada, que transitava pelos grandes centros, no novo mundo e no velho mundo. Usava uma diáfana saia verde-oceano que lhe cobriam até os joelhos, as sandálias afro-caribenhas, o colete amarelo claro, uma delicada aliança estilizada no dedo da mão esquerda, as guias afro-brasileiras no pescoço e um doce e leve perfume a alfazema. Era um amálgama, bem equilibrado de elementos europeus, afro-caribenhos, afro-brasileiros, um leve sotaque afrancesado parisiense, denotava que, Charlotte parecia ser alguém que se lançara no mundo, que não perderá a sua própria identidade ou lutava para não perder. Coisa que ficou claro mais tarde.

De costas para o mar, Charlotte, estava diante um cavalete de alumínio, outra peça exclusiva soube mais tarde, ela pintava um quadro impressionista, uma pintura difusa, uma bailarina dançando na chuva. Reconhecia o cenário retratado, pelas pinceladas seguras e firmes de Charlotte, era um retrato instantâneo pouco, de um fotógrafo obscuro e anônimo, do final do século XIX.  O rosto amorfo, da bailarina adolescente retratada, me apavorou, sem eu saber o motivo de tal fato. Lembro-me de perguntar para Charlotte, o que de fato estava ocorrendo ali. A pintora parou de dar as suas pinceladas, olhou em volta e me disse que a vida é assim, um dia gente está morrendo de tédio em um buraco qualquer. E no outro dia estamos felizes fazendo loucuras, na beira mar em uma praia esquecida por Deus. Não engoli bem aquela resposta e Charlotte olhou de forma abissal e um sorriso sinistro brotou naquela face enrugada.  

Então, ela me convidou de forma afetada, para irmos até a tenda, que estava ao lado da gente, nas palavras dela, irmos até o que ela nomeou, de humilde residência temporária. Logo eu pensei que iriamos sentar em confortáveis poltronas sofisticadas, com taças de cristal das Boemias em mãos, beber champanhe francesa. Debater os artistas plásticos Mary Cassatt, Édouard Manet e Camille Pissarro ou mesmo as poesias de Charles Baudelaire e de Edgar Allan Poe. Mas não, Charlotte me convidou a sentar em uma cadeira barata de plástico, me convidou a se juntar a ela, e assim eu o fiz. Charlotte, simplesmente sentou, levou a não até um cooler, sacou de uma lata de uma cerveja popular nacional, jogou na minha direção.

A pintora, me confidenciou que me conhecia, pois seguíamos a mesma tendência, mas em áreas diferentes, eu não discordei e Charlotte me disse que os seus antepassados viviam se metendo em confusões lá no distante velho mundo. E que parte da família paterna e materna, andaram aprontando das suas, na segunda grande guerra, lá no velho. Claro que os detalhes indigestos, ficaram de fora da nossa conversa. E então eu insisti o fato estava ocorrendo ali, ela me respondeu de forma vaga, ela vivia em uma casa de repousos para idosos, perto da agitada rodovia que ligava as duas cidades. Uma casa ao pé do morro, que na verdade era a casa da família dela, projetado para ser uma clínica, onde idosos, acidentados, doentes graves e tratamentos de paciente de pós-operados ficariam por pouco tempo. Tempo suficiente para fazer exames, tratamentos, testes psicológicos e tratamentos psiquiátricos.   

Ousado disse eu, e ela me disse que era paciente seletos, que logo a clientela se afunilou para pacientes idosos, o tempo curto, passou para pacientes permanentes e que ficavam em dias de semana. Como a família de Charlotte era quase toda ligada às áreas da saúde, não era difícil manter o projeto. Mas nada disto explicava a invasão da praia agreste. Então, Charlotte me olhou nos olhos, eu os olhos dela se acinzentaram, a voz dela ficou um tanto gutural e ela me falou do grupo triângulo vermelho. Perguntou mesmo, se ela queria saber do que ela tinha para falar. O sussurro astral, dos relatos de Charlotte chegaram a mim de forma avassaladora, aterradora, eu estava perplexa e não poderia me levantar, o mais que tentasse.

Era o cair da noite, quando me foi permitido sair daquele lugar, então eu ouvi o vento gélido, a sombra projetada do morraria nas areias da praia. Senti os fortes cheiros putrefatos de peixe podre, os banhistas idosos, estavam decrépitos, vi as dentições destruídas eles e elas riam, apontavam para mim. Sai dali e me voltei, a praia estava vazia, a noite não tardava e eu tinha que voltar para casa, pois tinha uma história para escrever.      

 

Fragmento do livro: Do diário de uma louca, texto de Clarisse Cristal, poetisa, contista, novelista e bibliotecária em Balneário Camboriú, Santa Catarina.

Arte digital de Clarisse Costa, é designer gráfico, novelista, contista e cronista em Biguaçu, Santa Catarina.  

 

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